O quarto de Brooklyn
Porque será que o estranho mendigo de olhos brilhantes se dirigiu a mim chamando-me Miss Vaughan?
Se até o porteiro me chama Mrs Mendes! Neste prédio de Brooklyn nunca fui solteira. Aqui sou apenas a viúva Mendes. Este mendigo é um recém chegado à esquina leste!
Chamou-me Miss Vaughan no momento em que eu hesitava em abrir esta carta registada que fui buscar à estação de Sheepshead Bay.
Não está dirigida nem a Claire Vaughan nem a Claire Mendes. Está dirigida a António Mendes e tem um selo estranho, dum lugar remoto, chamado Açores. No selo diz Republica Portuguesa e a cor é verde chumbo. Tem a figura de uma mulher empunhando uma gadanha. Será a morte? Talvez seja uma ceifeira. Faz-me medo. É um mau pressentimento.
Consegui trazer a carta da estação de Sheepshead Bay, onde tudo está em obras,porque levei a certidão de óbito do António e a nossa licença de casamento. Lembrei-me que seria necessário provar que podia levantar uma carta, dirigida a uma pessoa falecida há dois anos,mostrando ele fora o meu legítimo marido.
Não abri a carta. Tenho-a no colo. Quando cheguei cá acima, abri a porta do meu apartamento, sempre silencioso,entrei e de forma automática fui aquecer agua para fazer um café que não me apetece beber. A caneca ficou no balcão da pequena cozinha onde preparo refeições ligeiras e sem sabor que como por obrigação.
O António nunca entrou a porta deste apartamento vazio de recordações.
As flores continuam viçosas na jarra de cristal fosco, jarra que trouxe comigo de East Providence . Prenda única do António,antes de casarmos.
Tudo o resto ficou para trás,móveis velhos e tristes que nos deram tanto prazer escolher em lojas de segunda mão. Tínhamos vida e sonhos,um futuro juntos e filhos que viriam. Para trás, no passado de ambos, havia demasiada frialdade e um deserto de dunas acidentadas.
Cada um de nós contou ao outro o muito pouco que queríamos partilhar e que não trouxesse dores e as lágrimas que pressentíamos.
O António tinha vincos profundos na face ainda tão jovem, vincos que desciam das asas do nariz até aos cantos da boca. Vincos de amargura a que eu chamava “os teus azores”. Ele sorria e os vincos não alisavam. Desses “Azores” só conheço as palavras penhascos e mar. E dor.
Por mim, Claire Vaughan, António soube da Irlanda também do outro lado do mar. Eu pouco mais disse_a miséria e a fuga estão patentes nas nossas mãos e traços.
Irmãos antes de sermos amantes, casados como dois pedaços de madeira em cruz calcinada pelo mar.
Chegados ao Porto de Nova York com alguns meses de diferença,ambos sem notar sequer a Estátua da Liberdade. Estávamos mais preocupados com os carimbos da autoridade portuária do que com o gigantesco símbolo da Liberdade.
O nosso sonho era comum: trabalho para matar a fome.
António morreu no trabalho. Caiu de um andaime de um destes prédios de Brooklyn. Por isso me mudei para aqui. Para podermos continuar a conversar as nossas conversas feitas de silêncios e de entendimento mútuo.
Por isso o porteiro do prédio só conhece esta Mrs Mendes. Nunca ouviu falar de Claire Vaughan. E não aceitou a carta dirigida ao Sr. António Mendes,carta que vinha já da estação de Rhode Island, onde há mais de um ano deixei esta minha nova morada. Não tinha mais ninguém a quem a dar. Esta carta, que tenho medo de abrir porque estará escrita numa língua que não conheço e nem poderei ler, que pode trazer para mim, que me pode trazer do António?
Já a apalpei várias vezes. Tento adivinhar o conteúdo. Fotografias? Documentos? Uma certidão de óbito?
O selo tão sombrio. A ceifeira da morte.
-Que farias tu,António?
Olhando os céus de Brooklyn, onde tu és o meu Anjo S. Miguel, interrogo-te.
-Que farias tu, António com esta carta? Abri-la-ias? Ou seria mais um envelope amachucado como os nossos corações de errantes foram amachucados antes de nos tornar-mos em Mr e Mrs Mendes?
As flores tão frescas ainda de ontem. A campainha está a tocar.
Pouso a carta no peitoril da janela. O sol poente entra e forma uma mancha brilhante na carpete verde. Os estores da pano cru verde bandeira tornam-se brilhantes como os olhos do mendigo. Brilham mesmo sem esperança.
A campainha está a tocar e eu vou abrir.
Edward Hopper está a chegar. Este homem silencioso e fechado, que conheci há dias na cafetaria ShopSuey quer pintar-nos, a ti e a mim, nos céus de Brooklyn.
Talvez depois da sessão de pose, que há-de pagar o meu jantar lá fora, na cafetaria da esquina leste, eu possa abrir a carta e, quem sabe, procurar o mendigo que me chamou Miss Vaughan. Aquele cujos olhos brilhavam como o sol poente.
O Shopsuey é um bar que também foi pintado por Edward Hopper e do qual também fiz uma reprodução.
Beatriz Lamas Oliveira
Beatriz Lamas Oliveira – nasceu em Braga e licenciou-se em Medicina pela Faculdade de Medicina de Lisboa. Desenha, pinta e escreve desde a adolescência. O trabalho como médica nunca impediu outras atividades que lhe são essenciais para se sentir útil, viva e em estreita relação com a Natureza. O seu primeiro romance, “O Inseto Imperfeito”, foi publicado em 1999. Desde os anos 80 até à presente data fez várias exposições de pintura, usando diferentes técnicas e materiais.
Em outubro de 2014 esteve no nosso agrupamento a apresentar o seu 1.º livro da coleção Vida Selvagem: “O mocho sábio”.
Em abril de 2016, também nos visitou para apresentar o seu 2.º livro da coleção Vida Selvagem: “O Clube das Efes”.
Em fevereiro de 2017 voltou à nossa biblioteca para apresentar o seu 3.º livro da mesma coleção: “A raposa Sebastiana”.
