Continuação do conto “O quarto de Brooklyn” (II)

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Continuação do conto “O quarto de Brooklyn” – A CARTA

Sr António Mendes,

Vai perdoar-me o atrevimento, mas aventuro-me a escrever-lhe para lhe dar notícias da sua família. Foi através do consulado que consegui esta sua morada numa tal de East Providence onde parece que o senhor mora ou morou antes. Não sei o que significa “east” mas “providence” só pode ser a divina providência, ou seja, é mesmo um dedo apontado ao futuro.

Aqui nos Açores, terra dos seus pais e avós, somos muito crentes. Espero que o senhor mantenha as suas obrigações religiosas em dia. Eu sou o Padre Baldaya, da freguesia de Mosteiro, ilha das Flores. Não se lembrará de mim!Freguesia, pobrinha mas arranjadinha, onde casei os seus pais, Manuel e Maria Mendes. O senhor António, o amaricano a quem esta carta vai dirigida, foi o terceiro filho do casal que abençoei. Ainda me lembro do dia em que a sua mãe se me veio chorar a sua ida para as Américas. Aqui não havia futuro, e os seus pais não lhe quiseram cortar os sonhos. Deixaram-no ir, mas o seu lugar vazio, nunca foi ocupado. Nem a sua irmã mais velha, a Gracinda que Deus tenha, nem a mais nova que lhe jaz ao lado aqui no cemitério, conseguiram, com as mortes prematuras, aquecer a velhice dos seus pais. A Gracinda empreendeu muito na sua ausência, deixe-me que lhe diga!

Aqui no portinho ficaram sempre os mesmos três barcos, agarrados à areia como gavinhas. Os seus velhotes continuaram a cultivar os três palmos de terra que a sua mãe recebeu de herança. O inhame, o feijão, os agriões de água para os quais a sua mãe tinha mãos de fada, um porquinho no curral,assim iam alimentando a família. Do lado do seu avô materno, por alcunha o Vime, donde se deduz que era cesteiro, o seu pai recebeu um moinho de água já muito arruinado e que logo esbarrondou mesmo de todo, com a ressalga do mar. Ficaram-nos as águas, que essas abundam aqui, de tal modo, Deus me perdoe, que às vezes penso que as nossas ribeiras nasceram de alguma pesada lágrima da Santíssima Trindade, que como sabe, muito veneramos.

Estou velho, António, creio que posso chamar-te assim, que ainda te fiz na testa a cruz do crisma. E esta carta porque ta escrevo? Porque mo pediu a tua mãe que também já não está no mundo dos vivos. Ela pediu-me para ver se as autoridades nos mandavam alguma notícia de ti, porque tinha tido um sonho e queria-lhe parecer que tu havias de gostar de o ouvir. Queria mandar-te carta.

Muitas voltas dá a vida e tudo demora o tempo de uma tormenta. Prometi-lho. Aqui vai o sonho:

Há na nossa ilha umas rochas de pedra negra que se elevam do mar. Parecem uns cabeços e por esse nome são conhecidos. A cada um dos penhascos, o seu nome de batismo.

No sonho da tua mãe, Maria Mendes, uma noite, a terra estremecia com grande uivo vindo das profundezas. E ao acalmar o tremor, um cabeço novo, em forma de cruz surgia no horizonte. Nesse cabeço nascia um arco íris. E formava aquela coroa lindíssima e, no sonho, a tua mãe conseguia ver um outro lado do mar. E nesse outro lado, que se foi desvanecendo muito rápido, ela conseguiu vislumbrar, ainda, uma pequena fada que fugia, rindo, como só criança marota faria.

Maria Mendes pensou, na sua singeleza, que a pequena fada seria a tua futura mulher e que com ela serias feliz.

Nunca mais a ouvi queixar-se, nem das dores nas mãos que a afligiam, nem da falta do teu pai, que um dia saiu para o mar e não voltou, nem deixou rasto. Silencioso como tinha sido toda a vida, o Manuel Mendes deixou um grande vazio. Mas a tua mãe queria que soubesses que, ela aqui ,estava bem. E feliz de saber que tinhas encontrado a mulher que Deus te destinou.

Talvez uma mulher vinda de um país de antigas rainhas, onde as princesas eram mendigas disfarçadas que traziam, no regaço, tempos felizes.

José Baldaya, Pároco de Mosteiro

Ilha das Flores, Açores

Março de 1930

Autora: Beatriz Lamas Oliveira

 

Beatriz Lamas Oliveira – nasceu em Braga e licenciou-se em Medicina pela Faculdade de Medicina de Lisboa. Desenha, pinta e escreve desde a adolescência. O trabalho como médica nunca impediu outras atividades que lhe são essenciais para se sentir útil, viva e em estreita relação com a Natureza. O seu primeiro romance, “O Inseto Imperfeito”, foi publicado em 1999. Desde os anos 80 até à presente data fez várias exposições de pintura, usando diferentes técnicas e materiais.

Em outubro de 2014 esteve no nosso agrupamento a apresentar aos aluno do 3.º e 4.º ano do nosso Agrupamento o seu 1.º livro da coleção Vida Selvagem: “O mocho sábio”.

Em abril de 2016, visitou-nos para apresentar aos alunos do 8.º ano da Escola Secundária o seu 2.º livro da coleção Vida Selvagem: “O Clube das Efes”.

Em fevereiro de 2017, apresentou aos alunos do 3.º e 4.º anos da Escola Básica de Pias o seu 3.º livro da coleção Vida Selvagem: “A Raposa Sebastiana”.

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