Continuação do conto “O quarto de Brooklyn” (IV)

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Continuação do conto “O quarto de Brooklyn” – No  D’Amici

pastel seco de E. Hopper D'Amici

Depois de sessão de pose com Mr Edward Hopper, a última, recebi o dollar que me deixou sobre a mesa da cozinha. Decidi ir jantar à esquina leste, ao café frequentado pelos operários que trabalham na construção dos prédios. Homens cuja silhueta me causa uma mistura de dor e de carinho. Talvez seja meu desejo rever o mendigo. Se fosse na minha Irlanda longínqua, o mendigo seria um duende.

Na mala de mão meti a carta, a que recebi na estação de Sheepshead Bay e permaneceu no meu colo, todo o tempo em que, nas minhas costas, o pintor, continuava o seu trabalho. Ele despediu-se, dizendo que ia passear férias com a mulher, a Jo, como ele lhe chama, em South Truro, Massachusetts. Penso que é um pintor já lançado e com sucesso e não sei porque se interessa por mim ou pela minha casa. No café que fica no prédio de tijolos vermelhos, o D’Amici, pedi um prato de massa com azeite e alho, o  mais barato e reconfortante que se come ali. A caneca de café sobre a mesa, aqueceu-me as mãos e consegui pegar na carta. Pedi uma faca para abrir o envelope, tal o medo que tinha de estragar o selo ou alguma linha de escrita.

Sim, a carta está redigida numa língua que não reconheço.

Consigo ver que está dirigida ao meu marido. Tenho de arranjar forma de traduzi-la.

Talvez que na St. Michael’s Church, o Reverendo Patrick  Cherry, que fez o enterro do meu António, conheça  algum padre português ou espanhol que possa ajudar.

Olho a carta uma e outra vez. Tem a data no fim, 1930. Saiu da Ilha há dois anos. Ou seja, saiu dos Azores no ano em que o António teve o acidente. Que voltas terá dado até chegar aqui! Tudo na minha vida tem sido inesperado, parece que alguma fada me deitou mau feitiço. Morrer o meu marido aos trinta anos, sem me deixar semente, sem sequer ter tido tempo de me fazer um filho. Morreu sem se despedir de mim. Dizem que a queda foi tão violenta que a morte o apanhou em vida, quer dizer, não sofreu. Pareceria um anjo?

Dois anos de casados, e tão bem nos conhecíamos. Se ele estivesse aqui comigo, beberíamos ambos o café, o dele com açúcar, mas não o meu. O António brincava comigo a dizer que eu era doce como o mel e não precisava de mais brandura. Falava pouco da ilha onde nasceu. Ensombrava-se-lhe o rosto magro de maxilares de pedra se qualquer referência à família surgia. Nunca lhe disse que durante as noites, por vezes, ele chorava, chorava como choram os vitelinhos recém nascidos da minha Irlanda natal. Chorava, e do choro entre cortado, algumas palavras eu ouvia. “Cinda” e “Mom”, eu conseguia distinguir.

Já corri com a ponta da unha todas as linhas desta carta. Reconheço as duas palavras East Providence, o que deve significar que quem escreveu sabe que lá morávamos antes. Talvez algum familiar do António tenha tentado juntar-se-lhe aqui? Terá escrito a perguntar se podia vir?

Ou então alguém da comunidade portuguesa terá dado notícia do falecimento do meu marido aos parentes dos Azores. E esses parentes podem ter-me escrito a mim. Volto a lembrar-me do mendigo que me chamou Miss Vaughan. Há qualquer coisa no brilho do olhar deste homem que mais parece vela acesa. E, sim, sei que o conheço. Não consigo lembrar ainda onde nos vimos. Mas o tempo vai trazê-lo de novo à minha memória.

Aqui o café está a esvaziar-se, as pessoas regressam a casa, onde as espera a família. Sinto-me desassossegada, febril. Peço outra caneca de café, para poder refletir. Esta carta tanto pode trazer algo de bom, como notícia de desastre na família que ficou na Ilha.

O António disse que tinha duas irmãs. Quando partiu de lá tinha 20 anos. Viveu aqui outros tantos. Até os pais podiam ser ainda vivos. Teriam agora entre os cinquenta e os sessenta. Mas pessoas pobres com trabalho duro envelhecem cedo e cedo se finam.

Quando o conheci ele era homem feito, alto, esguio, com traços tão marcados e duros que parecia basalto esculpido. Mas era flexível como um vime. Capaz de trepar a sítios altos e sentar-se nos andaimes, lá em cima, a comer a merenda, sem medo. Se o acidente se deu foi porque uma forte rajada de vento fez baloiçar a trave presa por cabos metálicos, igualzinha à da fotografia tirada por Mr Charles C. Ebbets durante a construção do edifício, e publicada no New York Herald Tribune em outubro passado. Até parece que os nova yorkinos só se aperceberam do perigo em que os operários se encontram lá no alto, depois do jornal ter chamado a atenção para isso. Guardei esse jornal e essa fotografia.

O coração de repente se me espanta a galope, a bater! A palma da minha mão vai-me ao peito, fico aturdida. Agora sei onde conheci o mendigo.

Ele era um dos operários que estava na viga. Foi entrevistado pelo jornal. Português como o António, conheci-o antes mesmo de encontrar o meu marido. Foi ele quem me indicou o centro de apoio aos emigrantes pobres, lá no sul de Brooklyn. O centro onde me ofereci para trabalhar como cozinheira enquanto esperava para arranjar um emprego. Foi graças a ele que dias depois vi entrar, no meio de um grupo onde   sobressaía, o  António, meu futuro marido.  Até se podia dizer que, aquele que é agora um mendigo, foi o nosso padrinho de casamento. Ele sim, conheceu-me como Miss Vaughan. Nunca mais o tinha visto.

Preciso procurá-lo. Saber o que lhe aconteceu, nestes anos conturbados da grande crise, em que nos perdemos de vista. Ele sim, pode traduzir a carta!

Autora: Beatriz Lamas Oliveira

 

Beatriz Lamas Oliveira – nasceu em Braga e licenciou-se em Medicina pela Faculdade de Medicina de Lisboa. Desenha, pinta e escreve desde a adolescência. O trabalho como médica nunca impediu outras atividades que lhe são essenciais para se sentir útil, viva e em estreita relação com a Natureza. O seu primeiro romance, “O Inseto Imperfeito”, foi publicado em 1999. Desde os anos 80 até à presente data fez várias exposições de pintura, usando diferentes técnicas e materiais.

Em outubro de 2014 esteve no nosso agrupamento a apresentar aos aluno do 3.º e 4.º ano do nosso Agrupamento o seu 1.º livro da coleção Vida Selvagem: “O mocho sábio”.

Em abril de 2016, visitou-nos para apresentar aos alunos do 8.º ano da Escola Secundária o seu 2.º livro da coleção Vida Selvagem: “O Clube das Efes”.

Em fevereiro de 2017, apresentou aos alunos do 3.º e 4.º anos da Escola Básica de Pias o seu 3.º livro da coleção Vida Selvagem: “A Raposa Sebastiana”.

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