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POEMA
Fundiu-se o olhar do poeta em lágrimas salgadas
e o poeta não quis cantar o que os seus olhos viram.
É que o poeta só cantava
para as meninas dos balcões floridos
de cactos e de cravos,
para aquelas
que sonham com estrelas
e príncipes de lenda.
– E preferiu cegar.
Fechar os olhos ao vaivém da rua
e continuar morando em sua Torre de Marfim.
Ah! Poeta inútil!
Enrouqueceu a cantar as líricas inúteis
aos cravos das janelas
das meninas fúteis
e ninguém mais se lembrará de ti.
Mas se cantares a rua, a fome, o sofrimento,
se abrires os olhos sobre o nosso mundo,
se conseguires que toda a gente o veja
e o sinta, e sofra, só de ver sofrer,
ninguém se lembrará de ti, poeta,
mas terás feito a tua luta,
e, nela,
justificado uma razão de ser.
[pp. 147-148]
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BIFRONTE
Calcorreei a estrada, encadernado
de senhor feudal
e, quando eu passava, lentamente,
desbarretavam-se as gentes, temerosas
do meu guante ferrado, que abatia
iras incontenidas
sobre justos e injustos, num fatal
julgamento de morte destruição!
Calcorreando a estrada,
sem um riso
de criança rosada,
nem uma boca de mulher
me deu a antevisão dum paraíso
qualquer!…
Voltei no meu caminho, revestido
do manto de farrapos dum mendigo
desiludido!
Curvei-me, até ao chão, ante os potentes…
apressados batiam coração
e dentes,
do frio da transição
As crianças rosadas cataram-me os piolhos…
Senti carinho e amor nos dóceis olhos
das mulheres da estrada
e, como dantes,
cheguei ao fim cansado das multidões!
Meti na estrada do monte
e, ora senhor feudal,
ou pobrezinho
que andou no mundo o seu caminho
e errou,
quer guardando no leito castelãs
ou moças aldeãs…
Nem assim sou o que sou!
[pp.37-38]
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À MODA ANTIGA
Toda de negro, negros os cabelos,
negros os olhos com fulgor’s de brasa,
negro os vestido simples que se casa
tão bem aos olhos que dá gosto vê-los,
Negra a pestana como arminho de asa
‘scondendo ao céu dos olhos dela anelos,
fulgor’s dos olhos meus, como cutelos
a ferir o mistério à sua casa.
Toda de negro no vestido leve
surge-me a espaços, ocultando-a breve
as cortinas de tule e tafetá;
Freira em convento o seu olhar me absolve…
Sendo negro o mistério em que se envolve,
são cor-de-rosa os sonhos que me dá.
[p. XV]
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RITMO ETERNO?
A enxada tomba… Cavador não sentes,
com ritmo igual, por esse mundo, a rodos,
dezenas delas a bater, também?
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Para que veio Cristo ao mundo e às gentes,
se aquilo que pregou veneram todos
— fingidamente — e nunca o fez ninguém?!
Espera cavador! O Sol que dorme,
agora, amanhã há-de voltar…
E, do negrume dessa noite enorme
que parece jamais querer cessar,
de tuas mãos, com teu esforço enorme,
— Um Novo Mundo há-de surgir, brilhar…
janeiro de 1938.
Álvaro Feijó, Diário de Bordo), in Os Poemas de Álvaro Feijó, pág.14
© Evoramons Editores e herdeiros de Álvaro Feijó
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PORQUE VISTE CHEGAR
Porque viste chegar
em carros que custaram
quantias fabulosas
ladies loiras,
signoras encantadoras
e os seus inseparáveis cães de luxo,
porque as viste chegar cheias do pó da estrada
e com ar de quem
teve perto de si o sofrimento,
choraste.
Valeu a pena? Não!
Valia a pena chorar por aqueles
que vinham
a pé.
novembro de 1940.
Álvaro Feijó, Diário de Bordo), in Os Poemas de Álvaro Feijó, pág.111
© Evoramons Editores e herdeiros de Álvaro Feijó
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TRANSFIGURAÇÃO
Gomo a beber, pela manhã silente,
as luminosas lágrimas de água
que uma estrela chorou…
Folha a cair na neve, lentamente…
– Homem! Anda sentir a tragédia de mágoa
que vai do gomo à folha que tombou!
[p. 16]
SARGACEIRO
É longo e pesado o engaço!
A barca vem cheia
de suor e de sargaço
e fome.
Tanto e nada!
Sargaceiro!
Limpas sargaço
do fundo deste mar
que, para ti, é baço
e não tem aquele aspecto sonhador
que nós lhe damos.
Ele, o mar…
Empresta-me o teu engaço:
há tanto que limpar!
[p. 154]
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NOSSA SENHORA DA APRESENTAÇÃO
O altar as vagas,
o dossel a espuma!
Missa rezadas pelo vento,
ora pelos fiéis defuntos que se foram
noutras vagas,
ora pelas barcaças que, uma a uma,
buscaram as sereias na distância
e se foram com elas.
Sobre o altar, entre círios, que não são
os círios murchos das igrejas velhas
mas os lumes de estrelas,
ELA,
Nossa Senhora da Apresentação.
Aquela
que não tem mantos da cor do céu
nem fios de oiro nos cabelos
nem anéis nos dedos;
aquela
que não traz um menino nos seus braços
porque os seios mirraram
e já não têm pão para lhe dar;
aquela
que tem o corpo negro e sujo
e os ossos a saltar
da pele
e dos rasgões da saia e do corpete;
Nossa Senhora da Apresentação
da Beira-Mar,
que tem capelas
em cada peito de marinheiro,
que morre e, num instante,
se renova
e que anda
quer nos engaços do sargaceiro
ou nas gamelas do pilado
e palhabotes da Terra Nova.
Aquela
A quem todos adoram.
Dos meninos
feitos nos intervalos das campanhas,
aos bichanos que limpam de cabeças
e tripas de pescado
as muralhas dos cais.
O dossel a espuma.
O altar as vagas
– e que altar enorme! –
Entre círios de estrelas,
Nossa Senhora da Apresentação
e Justificação
– a Fome!
[pp. 123-125]
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NOSTÁLGICA*
Debruço-me no cais por sobre o rio,
vendo os navios partir,
vendo os navios voltar.
Vejo algum no horizonte e sigo a esteira
até ele ancorar,
e vou seguindo a esteira
dos que partem, até deixar
de os ver.
No cais há sempre gente!
Muita gente como eu que das viagens
só vê princípio e fim.
Álvaro Feijó, Corsário (1940), in Os Poemas de Álvaro Feijó, pág.72
© Evoramons Editores e herdeiros de Álvaro Feijó
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PALHAÇO
Como os garotos entrei no circo
por sob a tela! Ninguém… Ninguém!
Saltei na arena, berrei na arena…
ninguém!
Vesti o fato vermelho e oiro
dalgum palhaço,
lancei nas ondas do ar o tesoiro
Do que eu quero fazer e que não faço.
Na escuridão senti um riso
quando atirei minha alma nua,
tal e qual é na escuridão
Riso de quem? Ninguém me via?
E a gargalhada ria,
como se fora eu próprio a rir.
Abri a alma, mostrei-a inteira!
O que podia… E o resto, a esmo!
E o riso, ria.
Riso de quem?
E fui palhaço de mim mesmo!
Álvaro Feijó, in “Os Poemas de Álvaro Feijó”,
Evoramons Editores e Herdeiros de Álvaro Feijó, 1.ª Ed. 2005, p. 71
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GARE
O comboio perdeu-se no negrume
da noite e da distância.
A leva dos emigrantes
– num sonho de riqueza
e na esperança de vida –
enchera o monstro.
Na gare, choros e gritos!
Namoradas perdidas,
mães velhinhas
e os amigos,
numa espécie de inveja dolorida,
por não poderem partir.
Na gare, a dor em cada face!
E só eu
– que não era um emigrante –
só eu tive um sorriso de mulher
pedindo que voltasse.
Álvaro Feijó, in “Os Poemas de Álvaro Feijó”,
Evoramons Editores e Herdeiros de Álvaro Feijó, 1.ª Ed. 2005, p. 77
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CANÇÃO DO PÂNTANO
Eu trago imundície
à superfície
e um coração dentro de mim.
Não querem ver-se em meu espelho negro
à noite as estrelas,
que o meu espelho perfura as almas
e mostra toda a vacuidade delas.
Os peixes não deslizam na água negra
onde melhor poderiam ocultar-se.
Ninguém me vem beber da água fétida,
nem banhar-se
no lodo das minhas margens.
No lago, à minha beira,
andam os cisnes
mudos, na adoração do azul,
e os peixes
na estupidez
dos arabescos que traçam entre as águas.
No lago, à minha beira,
andam ondinas
banhando-se
ao luar
a nudez complicada…
No lago, à minha beira,
que é cenário
e que não tem
coração, alma, nem nada.
Primeiros versos
1940
EU TIVE UM PÁSSARO DE PRATA
Eu tive um pássaro de prata…
Seguia rotas sem fim
– sem dar conta das horas, das distâncias –
para longe de mim.
Um dia veio a tempestade…
O pássaro quebrou as suas asas de prata
e capotou!
Sofri!
Eu sei lá se sofri,
vendo no chão toda a engrenagem
que a moldara
e a fuselagem
deselegante, como uma lesma, indiferente, ao sol.
E nem assim
deixou de erguer-se ao céu o pássaro de prata
tentando novas rotas,
voando sempre, e só, para dentro de mim…
Primeiros versos
Janeiro de 1940.
DIÁRIO DE BORDO
Letra a letra,
hora a hora,
linha a linha,
marquei no Diário de Bordo
as fases da viagem.
Dias e dias no embalar das vagas,
sem que um bafo de brisa poluísse
o abandono tentador das velas;
expedições forçadas, abordagens;
fome e sede de carne, nos jejuns
de cem dias de Mar;
velhos contos de bordo, em noites podres,
sem lua e sem estrelas;
o escorbuto na alma, apodrecida
à espera dos combates;
os rateios da presa recolhida
e, ao fim,
a Ilha dos Amores de qualquer porto
onde as mulheres se vendem.
E tudo foi, profundamente, inútil.
Livro de Bordo de Corsário, deixa
que o tempo apague a tua prosa inútil
e escreve a história imensa
daquela frota em que tu vais partir
– como pobre navio auxiliar –
à demanda e à conquista
do Novo Continente!
Corsário
(1941)
DO ALTO MAR
Tripulação!
às gáveas e às enxárcias;
ao leme e aos cordames;
atenta à tempestade
que anda no Mar
e vai
no nosso coração.
Tripulação!
Ajuda a tempestade…
Deixa ruir o mastro da mesena!
Lança à boca das ondas o sextante!
Deixa ao sabor das vagas o navio!
Não tenhas pena!
Quando haja só convés ao raso de água:
Tripulação…
Atenta.
Primeiros versos
(1939)
PARÁBOLA
Contei estrelas,
e elas
morriam, à medida que as contava.
E a escuridão nasceu.
Mas fiz estrelas
e pendurei-as
na escuridão da abóbada.
Fiquei nimbado de luz,
mas a Terra era negra à minha roda…
Álvaro FeijóCorsário (1940)
in Os Poemas de Álvaro Feijó
© Evoramons Editores e herdeiros de Álvaro Feijó
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OS DOIS SONETOS DE AMOR DA HORA TRISTE
I
Quando eu morrer — e hei de morrer primeiro
Do que tu — não deixes de fechar-me os olhos
Meu Amor. Continua a espelhar-te nos meus olhos
E ver-te-ás de corpo inteiro.
Como quando sorrias no meu colo.
E, ao veres que tenho toda a tua imagem
Dentro de mim, se, então, tiveres coragem,
Fecha-me os olhos com um beijo.
(Eu, Marco Pólo)
Farei a nebulosa travessia
E o rastro da minha barca
Segui-los-á em pensamento. Abarca
Nele o mar inteiro, o porto, a ria…
E, se me vires chegar ao cais dos céus,
Ver-me-ás, debruçado sobre as ondas, para dizer-te adeus,
II
Não um adeus distante
Ou um adeus de quem não torna cá,
Nem espera tornar. Um adeus de até já,
Como a alguém que se espera a cada instante.
Que eu voltarei. Eu sei que hei de voltar
De novo para ti, no mesmo barco
Sem remos e sem velas, pelo charco
Azul do céu, cansado de lá estar.
E viverei em ti como um eflúvio, uma recordação.
E não quero que chores para fora,
Amor, que tu bem sabes que quem chora
Assim, mente. E, se quiseres partir e o coração
To peça, diz-mo. A travessia é longa… Não atino
Talvez na rota. Que nos importa, aos dois, ir sem destino?
Álvaro Feijó
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VARINA
Eu mudei de pincel e de paleta
— embora seja a mesma a tinta com que escrevo —
mas mudei, que, de repente,
surgiste diante de mim.
Não é que me perturbes, mas eu sinto
que alguma coisa me comove ao ver-te.
Não é que te examine, porque sei
que me é quase impossível,
que me é mesmo impossível descrever-te.
A tua história, sim? A história que se repete
e é sempre nova porque há sempre gente
que nunca a ouviu
ou que não a quis ouvir.
O cais viu-te nascer!
Corrias, loucamente, pelas retas
intermináveis dos paredões
de cimento e granito,
e em caixotes com cheiro de sardinha
fazias tabogan das lingüetas
— o tabogan dos parques infantis
que não pudeste ver.
Assim, faminta e seminua
mas livre como os peixes
fizeste-te mulher!
Depois foi o correr das ruas da cidade,
enrouquecendo a gritar:
— “Quem merca os camarões” …
Depois um que voltou da Terra Nova
e te olhou como fera sequiosa
de carne,
quando o lugre, ao chegar, entrou na doca.
Depois o inevitável!
O luar…
A Senhora dAgonia…
A quentura de Agosto…
E, então,
não era só o peso da canastra,
era o peso dum filho
e a fome de dois para matar,
até que o lugre voltasse
e se esquecesse
o calvário da luta…
Um dia no intervalo da campanha
o sexo falou mais alto
e o coração calou.
Foste dum outro homem e, depois,
de dois,
de três.
Quando ele voltou
encontrou-te perdida
e tu perdeste-o.
Hoje, num outro porto, ainda gritas
o teu pregão.
Quando um homem te encontra fora de horas,
para ele foi sempre um bom encontro…
e. . . “até mais ver” …
Vês! Eu sei a tua história…
(Há tantos que a não sabem!)
E, no entanto,
Dum homem só ou de cem,
num porto do meu país ou num porto de Islândia
Tu surgiste aos meus olhos
como a mesma mulher.
Álvaro Feijó
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A NAU PERDIDA
Pobre, lá vai! Que rombo no costado!
Como a água a penetra aos borbotões!
Açoita-a, em fúria, o Mar. Adorna ao lado.
Anda à mercê das vagas, dos tufões!
Mas segue, segue em frente. O vento a ajuda!
Galga nas ondas, que doidinha, olhai!…
Julga-se, ainda, a nau que dantes era,
por levar, no porão, uma quimera,
por ir, do vento na refrega aguda,
ovante e sem saber per’onde vai!
Julga-se, ainda, a nau que dantes era…
– o que passa não torna ..
Na pobre nau perdida
a água entra e a adorna.
Vai sendo, aos poucos, pelo mar sorvida.
Na agonia estrebucha. Num desejo
de vida e luz, arfante, desesperada,
busca furtar-se ao comprimente beijo
do Mar que a envolve. – Após, é o Mar e nada…
Doirado como um astro,
haste esquecida em campo onde as mondas
colheram tudo, o topo do seu mastro
fica esperando ainda sobre as ondas.
Na rota pelo mundo
– ao deus-dará na vaga azul e infinda –
nós vamos – nau perdida em Mar profundo –
joguetes do tufão;
mas conservando, ainda,
na última Esperança a última Ilusão.
Outubro de 1937
Álvaro Feijó
Para saberes mais sobre o autor vê »»»»» aqui.
