RITMO ETERNO?

A enxada tomba… Cavador não sentes,

com ritmo igual, por esse mundo, a rodos,

dezenas delas a bater, também?

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Para que veio Cristo ao mundo e às gentes,

se aquilo que pregou veneram todos

— fingidamente — e nunca o fez ninguém?!

Espera cavador! O Sol que dorme,

agora, amanhã há-de voltar…

E, do negrume dessa noite enorme

que parece jamais querer cessar,

de tuas mãos, com teu esforço enorme,

— Um Novo Mundo há-de surgir, brilhar…

janeiro de 1938.

Álvaro Feijó, Diário de Bordo), in Os Poemas de Álvaro Feijó, pág.14

© Evoramons Editores e herdeiros de Álvaro Feijó

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PORQUE VISTE CHEGAR

Porque viste chegar

em carros que custaram

quantias fabulosas

ladies loiras,

signoras encantadoras

e os seus inseparáveis cães de luxo,

porque as viste chegar cheias do pó da estrada

e com ar de quem

teve perto de si o sofrimento,

choraste.

Valeu a pena? Não!

Valia a pena chorar por aqueles

que vinham

a pé.

novembro de 1940.

Álvaro Feijó, Diário de Bordo), in Os Poemas de Álvaro Feijó, pág.111

© Evoramons Editores e herdeiros de Álvaro Feijó

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NOSTÁLGICA*

Debruço-me no cais por sobre o rio,

vendo os navios partir,

vendo os navios voltar.

Vejo algum no horizonte e sigo a esteira

até ele ancorar,

e vou seguindo a esteira

dos que partem, até deixar

de os ver.

No cais há sempre gente!

Muita gente como eu que das viagens

só vê princípio e fim.

Álvaro Feijó, Corsário (1940), in Os Poemas de Álvaro Feijó, pág.72

© Evoramons Editores e herdeiros de Álvaro Feijó

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PALHAÇO
Como os garotos entrei no circo
por sob a tela! Ninguém… Ninguém!
Saltei na arena, berrei na arena…
ninguém!

Vesti o fato vermelho e oiro
dalgum palhaço,
lancei nas ondas do ar o tesoiro
Do que eu quero fazer e que não faço.

Na escuridão senti um riso
quando atirei minha alma nua,
tal e qual é na escuridão

Riso de quem? Ninguém me via?
E a gargalhada ria,
como se fora eu próprio a rir.

Abri a alma, mostrei-a inteira!
O que podia… E o resto, a esmo!
E o riso, ria.
Riso de quem?

E fui palhaço de mim mesmo!

Álvaro Feijó, in “Os Poemas de Álvaro Feijó”,
Evoramons Editores e Herdeiros de Álvaro Feijó, 1.ª Ed. 2005, p. 71

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GARE

O comboio perdeu-se no negrume

da noite e da distância.

A leva dos emigrantes

– num sonho de riqueza

e na esperança de vida –

enchera o monstro.

Na gare, choros e gritos!

Namoradas perdidas,

mães velhinhas

e os amigos,

numa espécie de inveja dolorida,

por não poderem partir.

Na gare, a dor em cada face!

E só eu

– que não era um emigrante –

só eu tive um sorriso de mulher

pedindo que voltasse.

Álvaro Feijó, in “Os Poemas de Álvaro Feijó”,

Evoramons Editores e Herdeiros de Álvaro Feijó, 1.ª Ed. 2005, p. 77

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CANÇÃO DO PÂNTANO

Eu trago imundície
à superfície
e um coração dentro de mim.

Não querem ver-se em meu espelho negro
à noite as estrelas,
que o meu espelho perfura as almas
e mostra toda a vacuidade delas.
Os peixes não deslizam na água negra
onde melhor poderiam ocultar-se.
Ninguém me vem beber da água fétida,
nem banhar-se
no lodo das minhas margens.

No lago, à minha beira,
andam os cisnes
mudos, na adoração do azul,
e os peixes
na estupidez
dos arabescos que traçam entre as águas.

No lago, à minha beira,
andam ondinas
banhando-se
ao luar
a nudez complicada…

No lago, à minha beira,
que é cenário
e que não tem
coração, alma, nem nada.

Primeiros versos
1940


EU TIVE UM PÁSSARO DE PRATA

Eu tive um pássaro de prata…
Seguia rotas sem fim
– sem dar conta das horas, das distâncias –
para longe de mim.
Um dia veio a tempestade…
O pássaro quebrou as suas asas de prata
e capotou!
Sofri!
Eu sei lá se sofri,
vendo no chão toda a engrenagem
que a moldara
e a fuselagem
deselegante, como uma lesma, indiferente, ao sol.
E nem assim
deixou de erguer-se ao céu o pássaro de prata
tentando novas rotas,
voando sempre, e só, para dentro de mim…

Primeiros versos
Janeiro de 1940.


DIÁRIO DE BORDO

Letra a letra,
hora a hora,
linha a linha,
marquei no Diário de Bordo
as fases da viagem.

Dias e dias no embalar das vagas,
sem que um bafo de brisa poluísse
o abandono tentador das velas;
expedições forçadas, abordagens;
fome e sede de carne, nos jejuns
de cem dias de Mar;
velhos contos de bordo, em noites podres,
sem lua e sem estrelas;
o escorbuto na alma, apodrecida
à espera dos combates;
os rateios da presa recolhida
e, ao fim,
a Ilha dos Amores de qualquer porto
onde as mulheres se vendem.
E tudo foi, profundamente, inútil.

Livro de Bordo de Corsário, deixa
que o tempo apague a tua prosa inútil
e escreve a história imensa
daquela frota em que tu vais partir
– como pobre navio auxiliar –
à demanda e à conquista
do Novo Continente!

Corsário
(1941)


DO ALTO MAR

Tripulação!
às gáveas e às enxárcias;
ao leme e aos cordames;
atenta à tempestade
que anda no Mar
e vai
no nosso coração.

Tripulação!
Ajuda a tempestade…
Deixa ruir o mastro da mesena!
Lança à boca das ondas o sextante!
Deixa ao sabor das vagas o navio!
Não tenhas pena!

Quando haja só convés ao raso de água:
Tripulação…
Atenta.

Primeiros versos
(1939)


 PARÁBOLA

Contei estrelas,

e elas

morriam, à medida que as contava.

E a escuridão nasceu.

Mas fiz estrelas

e pendurei-as

na escuridão da abóbada.

Fiquei nimbado de luz,

mas a Terra era negra à minha roda…

Álvaro FeijóCorsário (1940)

in Os Poemas de Álvaro Feijó

© Evoramons Editores e herdeiros de Álvaro Feijó

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OS DOIS SONETOS DE AMOR DA HORA TRISTE


I
Quando eu morrer — e hei de morrer primeiro
Do que tu — não deixes de fechar-me os olhos
Meu Amor. Continua a espelhar-te nos meus olhos
E ver-te-ás de corpo inteiro.

Como quando sorrias no meu colo.
E, ao veres que tenho toda a tua imagem
Dentro de mim, se, então, tiveres coragem,
Fecha-me os olhos com um beijo.

(Eu, Marco Pólo)

Farei a nebulosa travessia
E o rastro da minha barca
Segui-los-á em pensamento. Abarca

Nele o mar inteiro, o porto, a ria…
E, se me vires chegar ao cais dos céus,
Ver-me-ás, debruçado sobre as ondas, para dizer-te adeus,

II
Não um adeus distante
Ou um adeus de quem não torna cá,
Nem espera tornar. Um adeus de até já,
Como a alguém que se espera a cada instante.

Que eu voltarei. Eu sei que hei de voltar
De novo para ti, no mesmo barco
Sem remos e sem velas, pelo charco
Azul do céu, cansado de lá estar.

E viverei em ti como um eflúvio, uma recordação.
E não quero que chores para fora,
Amor, que tu bem sabes que quem chora

Assim, mente. E, se quiseres partir e o coração
To peça, diz-mo. A travessia é longa… Não atino
Talvez na rota. Que nos importa, aos dois, ir sem destino?

Álvaro Feijó

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VARINA


Eu mudei de pincel e de paleta
— embora seja a mesma a tinta com que escrevo —
mas mudei, que, de repente,
surgiste diante de mim.
Não é que me perturbes, mas eu sinto
que alguma coisa me comove ao ver-te.
Não é que te examine, porque sei
que me é quase impossível,
que me é mesmo impossível descrever-te.
A tua história, sim? A história que se repete
e é sempre nova porque há sempre gente
que nunca a ouviu
ou que não a quis ouvir.
O cais viu-te nascer!
Corrias, loucamente, pelas retas
intermináveis dos paredões
de cimento e granito,
e em caixotes com cheiro de sardinha
fazias tabogan das lingüetas
— o tabogan dos parques infantis
que não pudeste ver.
Assim, faminta e seminua
mas livre como os peixes
fizeste-te mulher!
Depois foi o correr das ruas da cidade,
enrouquecendo a gritar:
— “Quem merca os camarões” …
Depois um que voltou da Terra Nova
e te olhou como fera sequiosa
de carne,
quando o lugre, ao chegar, entrou na doca.
Depois o inevitável!
O luar…
A Senhora dAgonia…
A quentura de Agosto…
E, então,
não era só o peso da canastra,
era o peso dum filho
e a fome de dois para matar,
até que o lugre voltasse
e se esquecesse
o calvário da luta…
Um dia no intervalo da campanha
o sexo falou mais alto
e o coração calou.
Foste dum outro homem e, depois,
de dois,
de três.
Quando ele voltou
encontrou-te perdida
e tu perdeste-o.
Hoje, num outro porto, ainda gritas
o teu pregão.
Quando um homem te encontra fora de horas,
para ele foi sempre um bom encontro…
e. . . “até mais ver” …
Vês! Eu sei a tua história…
(Há tantos que a não sabem!)
E, no entanto,
Dum homem só ou de cem,
num porto do meu país ou num porto de Islândia
Tu surgiste aos meus olhos
como a mesma mulher.

Álvaro Feijó

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A NAU PERDIDA

Pobre, lá vai! Que rombo no costado!
Como a água a penetra aos borbotões!
Açoita-a, em fúria, o Mar. Adorna ao lado.
Anda à mercê das vagas, dos tufões!
Mas segue, segue em frente. O vento a ajuda!
Galga nas ondas, que doidinha, olhai!…
Julga-se, ainda, a nau que dantes era,
por levar, no porão, uma quimera,
por ir, do vento na refrega aguda,
ovante e sem saber per’onde vai!

Julga-se, ainda, a nau que dantes era…
– o que passa não torna ..
Na pobre nau perdida
a água entra e a adorna.
Vai sendo, aos poucos, pelo mar sorvida.

Na agonia estrebucha. Num desejo
de vida e luz, arfante, desesperada,
busca furtar-se ao comprimente beijo
do Mar que a envolve. – Após, é o Mar e nada…

Doirado como um astro,
haste esquecida em campo onde as mondas
colheram tudo, o topo do seu mastro
fica esperando ainda sobre as ondas.

Na rota pelo mundo
– ao deus-dará na vaga azul e infinda –
nós vamos – nau perdida em Mar profundo –
joguetes do tufão;
mas conservando, ainda,
na última Esperança a última Ilusão.

Outubro de 1937

Álvaro Feijó

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